segunda-feira, 26 de maio de 2014

Pata-Palo

Quando entrei no bar, a primeira coisa que me chamou a atenção foram aqueles olhos azuis enigmáticos. Desatento, tropecei nos meus próprios passos e dei de cara na primeira pilastra. Ninguém pareceu dar-se conta do meu dom para a autosabotagem, tão cheio que estava o lugar. Assim, perdi de vista os olhos azuis apenas os tendo fitado por tempo o suficiente para ficar envolto por seu mistério. Eram mais charmosos que belos, verdade. Talvez me reservassem algo, pensei. Mas o que não me reservaria nesse lugar tão novo? Embora houvesse algo mais ali, reconsiderei. Eu saberia reconhecer se voltasse alguma vez na vida a esbarrar com aqueles olhos. E apesar do sobressalto, deixei para revê-la ao acaso.
Fui pegar uma bebida enquanto o DJ do bar nos embalava em ritmos latinos desconcertantes. Sopro de metal, cerca de duzentas pessoas dentro do chocalho que era aquele bar. Todo mundo se sacudindo e as bebidas inacabáveis indo metade pro santo, metade pra dança, metade pro amigo, metade pro bêbado. O santo, de tanto brinde ficou ébrio, tirou o anjo da guarda para rodar e lascou-lhe um beijo no meio do teto do bar que agora era festa. Quando o som mudou para salsa e as pessoas não paravam  de se embolar é que descobrimos tratar-se de um terremoto o motivo de tanto rebuliço. Alcançar a porta era difícil e a saída disputada. Sem anjo da guarda nem nada, cada passo dependia de outros duzentos passos dispendiosos.
Quando o local foi por fim totalmente evacuado, algumas pessoas encontravam-se desacordadas e tentei ajudar, embora o meu estado de sobriedade aspirasse cuidados.
De olhos fechados, olhos de cães bêbados, não encontrei aquele olhar azul-enigma. Talvez os olhos estivessem desmaiados, pensei. E quando vi uma garota sendo levada por ambulância, cismei que poderia ser ela. Que poderia ser você.
- Eu sou o irmão mais velho dela, preciso ir junto!
Aguardei na sala de espera impacientemente até onde aguentei. Quando seus olhos se abriram, estavam fechados os meus. Apaguei na cadeira do ambulatório e você foi embora sem me avisar que tinha ficado bem.
Ingrata, pensei.
Mas você nem sabia.
Eu nem sabia se era você. Se era ela.
Consternado, fui procurar o endereço do meu hostel provisório, que me servia enquanto eu não conseguia moradia fixa na cidade.
O quarto, impessoal e impecavelmente limpo, serviu para tomar uma ducha. Quando eu ia saindo para um café na hora da siesta, notei que o dinheiro havia ficado na devastada roupa do dia anterior...
Imagine qual surpresa não foi a minha quando encontrei no bolso da esbórnia apenas uma nota remanescente.
Imagine o que não senti quando percebi que a nota era na verdade um pedaço de papel de receita médica escrito no idioma local com letra que não era de médico.
Eu precisava aprender espanhol.

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